O donativo de Camacho à posteridade está assegurado. A forma limpa e crua como se refere a cada jogo é a matriz de pensamento de um treinador à moda antiga. Não é apenas o “salir a ganar”, é também o entrar à Benfica. Aos jogadores, o treinador espanhol repete a mesma cassete: «O primeiro canto é nosso, a primeira falta é nossa, o primeiro golo é nosso». Há trinta anos atrás, quando Camacho jogava no Real Madrid, as coisas passavam-se assim. Era uma espécie de superioridade moral conquistada sobre o adversário, a que uns anos mais tarde, Jorge Valdano chamou medo cénico do Santiago Bernabéu. O problema para Camacho é que o futebol está mais sofisticado e o treinador do Benfica parou nessa definição aúrea do jogo.
Infelizmente para Camacho, não basta ao Benfica “salir a ganar”. Seria, aliás, mais astuto que a equipa pudesse “salir a pensar”. O treinador espanhol continua a viver nessa grandeza moral de um ex-jogador do Real Madrid a quem bastava mostrar a camisola do clube para que as trincheiras adversárias se enchessem de desertores. E pensa Camacho que em matéria de grandeza, o Benfica e o Real Madrid estão bem um para o outro. É certo, mas os jogadores actuais do clube estarão preparados para essa sobrecarga de história? A leveza actual dos equipamentos vale pouco se Camacho insistir em vestir aos seus jogadores aquela roupa mental que continua a guardar desde os anos setenta e oitenta. O fardo é muito pesado para o actual plantel.
O jogo com o Nuremberga demonstra que uma equipa de futebol deve ser muito mais do que a súmula histórica do clube que a serve. Isto é válido para o treinador como é para os adeptos. No futebol, não há ninguém mais saudosista que os adeptos. E se, porventura, esse saudosismo mina a relação entre uma equipa de futebol e os seus apoiantes, os atalhos para a vitória ficam mais dificeis de descobrir. Nos dias que antecederam o jogo, até Eusébio insistiu nesse peditório nacional dos dois pontas-de-lança. Igual a Camacho, o Rei pertence aos anos sessenta, às Taças dos Campeões Europeus e à hegemonia clara e indiscutida do Benfica e do Real Madrid nos dois contextos possíveis: interno e europeu.
E agora, como explicam os autores desse peditório, muitos deles espalhados pela boa imprensa que ainda calcula que anterior ao talento são as camisolas que ajudam a ganhar os jogos, que o Benfica só tenha conseguido jogar futebol sério e perigoso, depois de Camacho desfazer a promitente dupla de pontas-de-lança? Sim, e agora? A primeira parte do jogo parece ter sido a revelação final de que o treino é, no futebol actual, o parente mais chegado das vitórias no futebol. Não se discute que uma equipa deva jogar como treina, mas já parece um ataque frontal à sensatez que uma equipa em poucos dias mude tão radicalmente a sua identidade. E fê-lo através do treino, em três ou quatro sessões de aprendizagem rápida, ou fê-lo para reagir a um impulso de popularidade? Se o Benfica quiser jogar com dois pontas-de-lança pode fazê-lo, não há nenhuma lei que o proíba, mas deve esperar pela recuperação de Nuno Gomes, que é o único avançado no plantel capaz de oferecer complementaridade ao seu parceiro no ataque e mobilidade à equipa na forma como se consegue mover entre-linhas.
Seria igualmente necessário que a equipa pudesse desenvolver, entretanto, outras dinâmicas no meio jogo, de forma a que a equipa possa atravessar as linhas do adversário com movimentos que ajudem à sua desconstrução defensiva. Diante dos alemães, com dois jogadores altos e pesados no ataque, quem estaria à espera que fosse Cardozo ou Makukula a fazer movimentos em profundidade um em relação ao outro, ou deslocamentos laterais que permitissem as rupturas dos jogadores do meio-campo? Só mesmo o treinador alemão é que podia ter sonhado com isto na noite anterior ao jogo.
E de que adianta colocar duas masmorras no ataque, sem uma área de serviço em condições de oferecer aos atacantes outra coisa que não seja o constante apedrejamento de bolas, vindas da sua área, por express-mail, despejadas inutil e inconscientemente à procura do ganho de uma segunda bola que permita à equipa ganhar posições para atacar a baliza do lado que interessa? Onde estão os movimentos dos médios-ala, à procura de zonas interiores do campo, juntando-se a Rui Costa na última fase de construção e oferecendo a Léo, do lado esquerdo e a Nélson do outro lado, a possibilidade de assegurarem o jogo exterior? Não há nada disto no Benfica. Aquilo a que muitos chamam dinâmica é isto. Uma invenção do futebol moderno que evita que os jogadores corram muito, dando-lhes a possibilidade de correr melhor. É por isso que ao Benfica não lhe interessa “salir a ganar”. É muito melhor “salir a jogar”.
3 comentários:
Excelente. É exactamente isso.
Análise correcta,que maioria detecta mas que Camacho teima em não entender ou ignorar.
Digo mais,em vez de "salir a ganar",prefiro "entrar a ganar"..ele que diga isso aos jogadores,que devem entender o seu salir,como um "no fim qd tudo tiver perdido".
Nem mais. Nenhuma equipa que se preze joga com dois pontas-de-lança fixos. Jogar com dois avançados é para quem tem "Rooneys" que não estranham o jogo exterior. A imprensa não sabe o que diz e o Camacho foi na cantiga. Ainda por cima entra no jogo deles e mostra-se irritado sempre que abordam o assunto, reagido exactamente como lhes convém...
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